[...] Como se houvesse alguma importância especial para esse pequeno mundo, mas é apenas um acidente de geometria e ótica. Não há nenhum sinal de humanos nessa foto. Nem nossas modificações da superfície da Terra, nem nossas máquinas, nem nós mesmos. Desse ponto de vista, nossa obsessão com nacionalismo não aparece em evidência. Nós somos muito pequenos. Na escala dos mundos, humanos são irrelevantes, uma fina película de vida num obscuro e solitário torrão de rocha e meta. [...]

Esse trecho do icônico texto “Pálido Ponto Azul” de Carl Sagan, enfatiza a insignificância do nosso planeta perante o universo. A foto tirada pela sonda Voyager 1 a uma distância de cerca de 6 bilhões de quilômetros da Terra mostra nosso planeta como um ponto azul brilhante, um pixel, como Sagan brincava. Um ponto minúsculo “preso” dentro de um raio de luz solar. 

A quarta temporada de Discovery nos leva a uma mudança de ótica em relação a quem somos, em que acreditamos, às nossas crenças e ideologias; às nossas certezas e coragem para desbravar a galáxia. Ainda que avançados, poderosos no século 31, com a Federação se reerguendo após a Queima, ainda obedecemos aos nossos instintos mais primitivos quando somos atacados? Não deveríamos estar menos apavorados com o desconhecido? 

Ao longo destes quase sessenta anos de Star Trek, nos deparamos com espécies e mundos muito mais imponentes que a Terra. O Q Continuum destoa de toda a nossa visão sobre a existência. O Portal da Eternidade é uma dádiva do universo. Tantas formas de vida, tantas culturas, tantos poderes. Em todas essas grandes maravilhas misteriosas do cosmos, sempre encontramos um apoio na linguagem. Ainda que distintas, o tradutor universal sempre teve um papel ativo na conexão entre todas as espécies que encontramos ao longo da nossa exploração em busca de conhecimento. 

No entanto, desta vez, ao notar uma ameaça “silenciosa”, da qual não conseguimos interpretar suas origens, suas intenções e/ou se de fato há uma espécie avançada e consciente de seus atos, percebemos que as raízes da humanidade ainda estarão presentes enquanto nossa espécie existir. 

De certa forma, é esse instinto que nos move. A curiosidade atrelada ao medo, a petulância, a soberba. A sensação de estarmos indefesos, sem saída, nos faz confrontar um reflexo que sempre tentamos ignorar. A humanidade é, de fato, insignificante. Basta voltar alguns séculos no tempo. Onde estaríamos sem o primeiro contato com os Vulcanos

O surgimento da DMA (anomalia), nos revela uma linha tênue nos acordos, nos tratados e nos discursos da recém-restabelecida Federação; A diplomacia, até então, idolatrada como a nossa certeza maior é confrontada. É neste ponto, na reunião para decidir as ações dos planetas da Federação e também os que ainda avaliam sua entrada, que observamos atentamente as divergências no ideal de uma galáxia em harmonia depois de todos os acontecimentos da temporada anterior; A Queima, a Corrente Esmeralda

Michael, finalmente Capitã da Discovery, se vê em um caminho tortuoso. Sua teimosia implacável e incrivelmente cativante, aponta que existe apenas um caminho para a resolução do problema: Diplomacia. Book, por outro lado, revela, em conjunto com Tarka, uma via alternativa. Sedutora aos instintos primitivos e violentos; instintos de demarcação de território, de demonstração de força. Rillak tem um papel fundamental enquanto presidente da Federação, e principal 'oponente' de Michael.

Nota-se então que não se trata de apontar um vilão e um herói, mas sim, uma questão primordial: Ideais.

Cada um tem sua própria razão para estar onde está. Para acreditar no que acredita. Book perdeu seu planeta Kwejian e por consequência, toda a sua família. Isso não lhe dá o direito de sentir raiva e querer se vingar dessa tal espécie? A resposta é sim, claro. No entanto, outra pergunta deve ser feita: A que custo? 

Estes tais ideais que nos moldam parecem ser flexíveis. A nossa mente, humana ou não, busca conforto nas palavras que precisa naquele momento de fraqueza e raiva. Tudo o que queremos quando estamos zangados é alguém que entenda e que nos diga que existe uma solução para extravasar aquele sentimento. “Libere sua raiva, honre os que se foram”.

Paralelamente a essa questão, também estamos observando como os conflitos à nossa volta alteram nossas relações com aqueles que estão mais próximos a nós. Se a fúria nos cega, o medo também. O amor e a empatia se tornam secundários. A sobrevivência precisa vir antes de tudo. Precisa mesmo? 

Há um certo equívoco aparente ao tentar desmembrar os nossos sentimentos. Podemos sentir amor e medo, e com essa junção, coragem por aqueles que amamos. Tarka evidencia essas conjunções. Seu arrependimento e dor, transformam-se em uma coragem absurda, insana. Coragem que o cega, que o leva a tomar atitudes que não tomaria em outras circunstâncias. 

A sutileza do roteiro está aí. Não se trata de Tarka ser o vilão ou não; de estar falando a verdade ou não; se trata do motivo para suas ações. Ele está errado? Sim. Mas faz por algo que acredita, por alguém que ama, na crença de que tudo aquilo valha a pena, que de alguma forma, alcance seus objetivos e que honre a memória de Oros, para que também se sinta menos culpado com aquela parte de si que sabe que está fazendo a coisa errada, que sabe que seu único e melhor amigo está morto; a parte que é silenciada pelo nosso egoísmo natural e instintivo. Somos assim, querendo ou não, é quem somos.

Book se torna um personagem de fácil convencimento. Afinal, ele quer acreditar que causar dor aos “agressores” amenizará sua dor e honrará a memória de seu planeta. Com essa busca pela zona de conforto afirmativa, ele se vê traído duas vezes antes que possa experimentar a sensação de plenitude através do raciocínio lógico e sem viés de confirmação de um sentimento alheio que existe apenas para corroborar com sua dor em uma injustificável caçada às bruxas.

Apenas o amor não é suficiente. Não para Michael e Book. Não para Paul e Culber. Não para Saru e T'Rina. Não para Adira e Grey. Essa urgência toda é um catalisador de conflitos. É nessa interseção dolorosa que o principal alicerce de Star Trek se destaca.

Afinal, Star Trek sempre foi uma ode à empatia e diversidade. Uma prova de que o amor sempre se sobressai aos conflitos. Mas o que acontece quando tudo o que você conhece está em risco? O que acontece quando esse risco é gerado por uma espécie que você nem conhece, que você nem sabe se tem empatia ou se importa com esse dano gerado? O que acontece quando quando esse risco vem de fora da galáxia, de um lugar que provavelmente nunca viu uma espécie como os humanos, e que provavelmente é muito superior a todos nós? Dialogar não parece suficiente. Talvez eles sejam tão poderosos e grandiosos que apenas um ataque ou contra-ataque possa surtir algum efeito.

Encontrar harmonia e consenso é utópico. Mesmo no futuro, mesmo com a Federação, mesmo com um inimigo em comum. 

Trilhamos esses dois caminhos paralelos e mantemos a convicção de que a diplomacia é a chave para a resolução. No entanto, outro elemento se mostra primordial para um primeiro contato. Algo tão cotidiano, tão de fácil acesso e banal, que nem nos damos conta que vem antes mesmo da diplomacia. Linguagem. Comunicação é linguagem. Linguagem é cultura. Cultura é história. História é passado e futuro. É a chave. 

Mas como se comunicar com uma espécie diferente de tudo o que conhecemos? Se está difícil se comunicar com nossos pares, vizinhos, que têm opiniões divergentes, como então realizar essa comunicação com os de fora? 

Michael sugere ir ao planeta antes habitado pela espécie 10-C para tentar encontrar algum traço de sua história que torne possível criar um elo para se comunicar. É quase como uma alegoria ao que vivemos. Em tempos onde as palavras já não valem muita coisa, apelar - no bom sentido - para a comunicação não verbal faz todo sentido. E acrescento que agrega de forma muito assertiva ao universo Trekker, visto que não teremos o ‘’conforto’’ de usar o tradutor universal, ou até mesmo gestos, mímicas ou presentes que simbolizam boas intenções. 

Iniciamos o processo de comunicação do zero, sem perspectiva de retorno, sem poder sequer imaginar a aparência dessa espécie. Se são indivíduos ou coletivos, como os Borgs. A única certeza que temos é que são gigantes, baseados em outros elementos, que não o carbono, como nós, como a maioria das espécies que conhecemos. 

Os esforços de primeiro contato reforçam como somos bons nisso. Coletivamente, representamos o melhor da Federação e dos mundos que a representam. Sob a capitania de Michael, somos persistentes e emocionais na medida certa. E até mesmo quando tudo parece estar perdido, o desconhecido não é visto como um agressor sem causa. Qualquer espécie, em qualquer lugar da galáxia, vai se defender ao se sentir ameaçado. Parece ser uma coisa de ordem biológica universal. Sobreviver é isso, não importa a nossa espécie.

Ao final de tudo, notamos que para além da linguagem, precisamos sempre estar dispostos a entender o outro. Mesmo quando não há uma ponte para o diálogo. A chave é estar sempre dispostos a construir essas pontes. Dispostos a entender as motivações do outro e também a aprender sobre aquele que se contrapõe a nós. Talvez isso não seja eficaz todas as vezes. - Não daria certo com os Borgs. - Mas não vale a pena arriscar? 

Gene Roddenberry - criador da Série Clássica -, sempre teve isso em mente para o universo Trekker, a Federação e principalmente a humanidade: O futuro é baseado em empatia e igualdade. Em diálogo aberto e disposição para a diplomacia, não importando a espécie do outro lado da mesa, não importando seus defeitos. Da nossa parte, sempre estaremos prontos para toda e qualquer negociação de paz, para toda e qualquer aliança que promova a harmonia através das estrelas.

No fim, tudo se resume a comunicação. Em como ela é fundamental para a sobrevivência do universo. Mas não somente a comunicação. Falamos de comunicação efetiva e ampla, onde haja um interlocutor e um receptor. Onde haja pessoas dispostas a aprenderem novas culturas; dispostas a cederem também. Pessoas que têm uma determinação específica e que não meça esforços para alcançar o diálogo.

Discovery faz um paralelo com o nosso tempo, assim como fez na temporada anterior,  - como se previsse a pandemia e seus efeitos - . Onde a Queima, essa ruptura no modelo de vida que estávamos acostumados, trouxe a obrigatoriedade de nos manter afastados uns dos outros, juntamente com o empoderamento de aproveitadores dessa distância criada pela pandemia. 

A quarta temporada trouxe a dificuldade de estabelecer diálogos com aqueles que, a princípio, não estão dispostos a isso. Que nem sequer sabem que precisam ouvir o outro lado da história, ou que esse outro lado existe. Não são vilanescos ou burros - com exceção de alguns -, mas apenas frutos de suas visões centradas em si mesmo, fechados para a criação de laços profundos com aqueles que são diferentes de nós. Fechados para ouvir e entender as dores do outro

E tal como o pálido ponto azul, nossa insignificância perante o universo pode até nos tornar menos relevantes em comparação com outras espécies, mas uma coisa é certa: Não somos menos capazes ou responsáveis pela paz que os outros. Somos bilhões de uns lutando pela sobrevivência e harmonia de um todo. 

Quem sabe em um futuro distante estejamos todos alinhados com esse pensamento, né?